terça-feira, setembro 29, 2009

Contos: O Último Entardecer

ailton

Por: Ailton São Paulo

Para além do imenso mar, um manto avermelhado se estendia horizontalmente, dando ao céu uma cor de fogo. Era fim de tarde, o dia recolhia-se, início de noite, hora em que o coração ainda mais se estreitava, comprimia-se, apertava-se… Ele sentou na areia morna e contemplou o espetáculo do entardecer. Algumas aves cruzaram o alaranjado do horizonte e saudaram o Sol que descansaria.

Havia uma angústia pouco contida no peito daquele homem. Como doía o seu peito, como se amargurava a sua alma. Nem mesmo o espetáculo do entardecer o fazia encher-se de sonhos belos, de esperança, de amor, naquela realidade blasfema. Quis gritar, mas o grito, pensou, seria abafado pelo ronco dos motores que moviam aqueles carros nervosos que passavam na avenida em frente. Pelo buzinar estridente, pelo macro sussurrar de micros sussurrares. Pelos pensamentos que se materializavam e faziam ensurdecer os homens… e enlouquecer o homem.

No longo avermelhado do final do dia, as aves ainda folgavam, brincavam como crianças em campo de várzea sob a chuva. Rodopiavam no céu e estremeciam suas asas libertas em planares hosanais. E tudo pareceu, àquele homem, sentado ali, na areia morna daquela praia, que se fazia uma prece a Deus. Uma prece silenciosa, que dispensou a inacessibilidade dos ritos e a incomunicabilidade das palavras. Uma prece feita de emoção pela simplicidade de um olhar.

Quis sonhar… Mas o sonho se trancou em seu mundo, pois decretou que desistiria de tentar mudar a razão humana. Portanto, aquele homem estaria impedido de sonhar. Contudo, ainda existiam as lágrimas… Que elas viessem!

Apenas seus olhos viam. Sua mente vagava por mundos interiores, em busca de respostas.

O rubor do dia ante a perspectiva, a iminência de encontrar-se com a noite, bela e iluminada, ainda mais crescia, como halo a coroar o horizonte para além das águas azuis daquele mar sem fim. E aquele homem se encontrava perdido, envolto nas brumas antagônicas de sua própria existência, enquanto sua alma pedia um milagre, um sinal que a conduzisse para além da hipocrisia. Algo ou alguém que o levasse embora de sua realidade entristecedora, amargurante.

Desolado, e com as lágrimas (sim, elas vieram!) escorrendo-lhe pelo rosto, ele via, como fogos de artifícios espocando em noite de “réveillon”, o filme de sua vida. Embora fossem “flashes” rapidíssimos, momentos, instantâneos, fragmentos, eram o que existia de sua vida, de sua medíocre condição humana. E por isso, ainda mais chorava as suas dores… e ainda mais chorava… ainda mais chorava… (Porque as lágrimas brotaram em abundância.)

Em pouco tempo o choro foi se transformando só em soluços até que tudo passou, e ele controlou a sua ansiedade, muito mais motivada por tudo o que viria após ele, após nós. E, como acontece, após todas as lágrimas, o vazio. Nem o conflito, nem a paz. O vazio, não do encontro consigo mesmo, ou da resolução dos problemas da humanidade, mas do não existir mais as lágrimas para serem choradas ou dores para serem sentidas.

Um olhar para além do mar… e um desinteresse inexplicável pela vida.

Agora, aqui e ali, pessoas caminham pela areia. Aqui e ali, garrafas plásticas eram trazidas pelas ondas espumosas e, ainda aqui e ali, toda a sujeira produzida pelo progresso humano era vomitado pelo mar, assim, como se quisesse dizer que ficássemos com o nosso lixo. Aqui e ali, tudo era exatamente igual ao que fomos, ou somos, ou seremos.

Nada parecia ser suficientemente bom, adequado. A sensação de estar perdido e de não saber para onde ir, a sensação de não saber qual estrada levaria a um porto seguro, a sensação de que o tempo era muito rápido para os instantes de alegria e devagar demais nos instantes de dor, a sensação de estarmos sós fazia enlouquecer, delirar e se perder. E era esta sensação, a de solidão pura que, dentre todas, mais angustiava, mais tristeza causava. Como é triste o ser solitário. Como dói a solidão. Mas parece que a solidão, ao lado da saudade, são as únicas dores que vêm da alma.

Podia ele sonhar, ainda?

Algumas outras pessoas, poucas, ainda passeavam na praia, enquanto o vermelho-alaranjado tinge, já agora com menor intensidade, o céu que encontra – em conúbio inconsútil – o mar. E o mar ainda vomitava o lixo envergonhante do nosso pavoroso progresso. O mar ainda vomitava o lixo enervante da nossa estupidez e de nossa falta de educação. O mar ainda vomitava as suas mágoas, como se fossem pragas apocalípticas.

Um cão abocanha uma embalagem plástica e a leva embora. Uma “Hustler” flutua sobre a marola e uma reluzente vulva de pêlos dourados, posta entre um lindo e volumoso par de coxas, abre-se toda à libido de um bêbado que se masturba ao entardecer, sem pudores hipócritas ou culpas dementes. Um homem que passa trazendo pela mão uma mulher que se deixa conduzir sem vontade…

Além, sob as primeiras sombras do anoitecer, um pouco mais para lá, ele a deita sobre a areia e lhe arranca, abruptamente, rudemente, violentamente, a minúscula saia, ao mesmo tempo em que abre sua própria calça e se introduz inteiro nas entranhas dela, que apenas fica, as pernas abertas como uma tesoura gigante jogada ao chão. O olhar vago, perdido nas primeiras estrelas da noite que vem, que chega.

O gozo – dele! – enfim.

Ele se levanta e vai, deixando-a sobre a areia, ainda perdida, parada, pouco resoluta, muito resignada porque descrente, porque desesperançada, porque usada, porque todos os dias violentada, porque jamais amada.

Uma oração…

O homem ainda permanecia sentado sobre a areia daquela praia: e ele era o resumo do seu próprio caos existencial! Olhava além… Mas, o que estava além era a diácope da razão humana.

Finalmente a mulher-pasto se levanta, ajeita-se e se vai (quase nua).

O que seria de nós se pudéssemos não ser o que somos?

Uma outra embalagem plástica veio poluir a praia em que aquele homem se sentou para ver o arrastar-se da vida, sem um cão vadio que a levasse dali. E neste instante ele se lembrou que havia lido, há algum tempo, um pequeno texto de Mário Quintana, sob o título de “Supremo Castigo”, que dizia:

“Em todos os aeródromos, em todos os estádios, no ponto principal de todas as metrópoles existe – e quem é que não viu? – aquele cartaz…

De modo que, se esta civilização desaparecer e seus dispersos e bárbaros sobreviventes tiverem de recomeçar tudo desde o princípio – até que um dia tenham seus próprios arqueólogos – estes hão de sempre encontrar, nos diversos pontos do mundo inteiro aquela mesma palavra. E pensarão eles que ‘Coca-Cola’ era o nome do nosso Deus.”

Mais que supremo, um tristíssimo castigo!

E o homem, sentado na areia da praia, pôde ver Gaia que morria sufocada. Havia sangue negro e volumoso como a noite… Não mais o vermelho-alaranjado, só mercúrio e enxofre.

Eis o instante em que todos voltam para casa. Momento de cansaço e tristeza a fazer com que as pessoas tenham pressa, queiram logo chegar… A soma de todas as horas, a multiplicação de todas as angústias e o aflorar de todos os medos… Eis o que é o entardecer: a hora triste da “volta”, da saudade e do desengano. Daí porque as pessoas querem ir logo para suas casas, último refúgio de suas certezas. Desejam a segurança de suas ilusões, desejam se esconder do mundo, abandonar, mesmo que por horas, as suas máscaras. Desejam ser elas mesmas. Ninguém se acredita parte do “todo”. Choramos e sorrimos, amamos e odiamos, tudo em uma só e mesma intensidade.

Um tiro e, no ouvir-ao-longe, a buzina estridente de um caminhão o calou… A areia ainda mais morna pelo líqüido vermelho a tingir-lhe aos borbotões… Um corpo sem vida caído ali, à beira do vasto mar.

O dia, finalmente, retirou-se… Era noite, agora…

Fonte: http://cinezencultural.com.br

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